O CARÁTER DA BESTA
João chama a besta por um termo derrogatório que reflete seu caráter maligno: “besta” (Ap 13.1). A imagem da “besta” com certeza indica que ele possuía um caráter mau. João apresenta essa besta como o composto de três carnívoros amedrontadores:
A besta que vi era semelhante a leopardo, com pés como de
urso e boca como de leão. (Ap 13.2a)
Esses animais seriam aterrorizantes para qualquer
conhecedor das arenas romanas onde homens e
mulheres eram cruelmente “jogados aos leões” e
outras feras.
Sem dúvida, Nero possuía um caráter imoral e
bestial. Ele matou a própria mãe, o irmão, a tia e a
esposa — além de muitos cidadãos romanos
eminentes. Ele era conhecido por amarrar
escravos em postes, vestir-se na pele de um leão e
atacá-los e estuprá-los (Suetônio, Nero, 29). Era
temido e odiado pelo próprio povo. A leitura da
literatura antiga demonstra que Nero “era de uma
brutalidade cruel e irrestrita”.
Tácito, o famoso historiador romano do século II, fala da “natureza cruel” de Nero que “condenou à
morte tantos homens inocentes” (Hist. 4.7,8). O
naturalista romano Plínio, o Velho, descreve Nero
como “o destruidor da raça humana” e “o veneno do
mundo” (Nat. Hist. 7.45; 22.92). O satirista romano
Juvenal lamenta a “tirania cruel e sangrenta de
Nero” (Sat. 7.225). Em outro lugar, ele chama Nero
de “tirano cruel” (Sat. 10.306). No século I,
Apolônio de Tiana até chama Nero de “besta”
(registrado em Filostrato, Vit. 4.38).
Não só a besta é imoral e selvagem, mas é também
presunçosamente blasfema:
Foi-lhe dada uma boca que proferia arrogâncias e blasfêmias
e autoridade para agir quarenta e dois meses; e abriu a boca
em blasfêmias contra Deus, para lhe difamar o nome e
difamar o tabernáculo, a saber, os que habitam no céu [...] e
adorá-la-ão todos os que habitam sobre a terra, aqueles cujos
nomes não foram escritos no Livro da Vida do Cordeiro que
foi morto desde a fundação do mundo. (Ap 13.5,6,8)
Nero cunhou moedas com uma imagem da própria
cabeça lançando raios do sol. Com essa manobra,
ele intencionalmente imitou o poderoso deus sol
romano Apolo. Uma inscrição em Atenas o louva
como “o todo-poderoso Nero César Sebasto, o novo
Apolo”.
Em 66 d.C., Tirídates, rei da Armênia, aproximouse de Nero em adoração, de acordo com o
historiador romano Dião Cássio, do século II:
De fato, os procedimentos da conferência não foram
limitados a meras conversas, mas uma plataforma elevada
havia sido erigida na qual encontravam-se imagens de Nero e,
na presença de armênios, partos e romanos, Tirídates
aproximou-se e prestou-lhes reverência; então, após sacrificar
a elas e chamá-las por nomes laudatórios, ele tirou o diadema
de sua cabeça e colocou-o sobre elas. Tirídates publicamente
prostrou-se diante de Nero, que estava assentado sobre a
tribuna no fórum: “Mestre, eu sou o descendente de Arsaces,
irmão dos reis Vologaesus e Pacorus, e teu escravo. E vim a
ti, meu deus, para adorar-te como faço com Mitra. A sina que
traçaste para mim será minha; pois tu és minha sorte e meu
destino”.
Com certeza Nero se adequa ao caráter de uma
“besta”.
O NÚMERO DA BESTA
Sem dúvida, o aspecto mais conhecido do
imaginário da besta no Apocalipse é o número
“666”:
Aqui está a sabedoria. Aquele que tem entendimento calcule
o número da besta, pois é número de homem. Ora, esse
número é seiscentos e sessenta e seis. (Ap 13.8)
O que esse número significa? E como ele nos ajuda
a identificar a besta do Apocalipse?
Antes de mostrar como esse número aponta para
Nero, devo comentar sobre o número em si
encontrado no Apocalipse. Alguns populistas
modernos tentam encontrar a besta no mundo
contemporâneo mediante a procura da série de três
números seis em conjunto. Alguns anos atrás, uma
teoria sugeriu que o presidente Reagan era a besta
porque cada um dos seus três nomes era composto
de seis letras: Ronald Wilson Reagan. Alguns
propõem que ele consista em um código de
computador baseado nesses três dígitos. Outros
declaram que refere-se ao Mark VI Personal Identity
Verifier usado em leituras biométricas da mão
humana. Ou os códigos de barra, que começam com
o código para “6”
, têm uma barra central representando o “6”
, e finalizam o código de barras
com as linhas representando o “6” de novo.
Esses palpites perdem a leitura exata do
Apocalipse. João não afirma que essa marca envolve
uma série de três seis. No grego de Apocalipse
13.18, o número realmente é “seiscentos e sessenta e
seis”
, e não “seis seis seis”. Várias traduções deixam
isso claro ao escrever o valor no formato alfabético,
em vez de em algarismos (Almeida Revista e
Atualizada, Nova Versão Internacional, Almeida
Século 21, Nova Tradução na Linguagem de Hoje,
Tradução Brasileira, Nova Almeida Atualizada).
Uma série de seis não tem nada a ver com o número
da besta. Na verdade, o número é o valor total:
seiscentos e sessenta e seis, uma soma aritmética
específica.
Enquanto tentamos decifrar o significado de João,
devemos ter em mente que o sistema numérico
arábico, tão conhecido por nós, não fazia parte do
mundo antigo. Ele foi, na verdade, importado pela
cultura ocidental no século XII. Antes dessa época,
os alfabetos tinham duas funções: não eram apenas
alfabetos, mas sistemas de enumeração (considere os
números romanos que você conhece). Muitos dicionários bíblicos observam essa prática em
relação às línguas bíblicas antigas na palavra
principal: “Números, numerais”.
Continuando nossa busca pela identidade do que
está escondido por trás do valor do número
“seiscentos e sessenta e seis”
, devemos nos lembrar
de que João era judeu, e ele escrevia sobre o juízo
divino contra os judeus. Em adição, devemos
reconhecer que o Apocalipse é o livro mais hebraico
do Novo Testamento, contendo marcas de imagens
visuais traçadas no Antigo Testamento, com
centenas de referências literárias a versículos do
Antigo Testamento, e uma forma hebraica de grego
diferente de qualquer outro registro do Novo
Testamento.
Se fizermos a suposição razoável de que o
hebraico seja a língua para procurarmos o
significado do número da besta, chegaremos à
mesma conclusão que outras linhas de evidência
sugerem: a besta é Nero César. A soletração do
seu nome em hebraico do século I era nrwn qsr
(pronunciado: “Neron Kesar”). Alguns arqueólogos
documentaram esse modo de soletrar em hebraico,
que apresenta o valor exato “seiscentos e sessenta e seis”. O léxico de Jastrow do Talmude contém
essa mesma escrita. A forma hebraica do nome
de Nero é escrita: Nrwn Qsr. A valoração numérica
desse modo de soletrar é a seguinte:
n = 50 r = 200 w = 6 n = 50 q = 100 s = 60 r =
200
A soma dessas letras resulta no número 666.
Muitos acadêmicos bíblicos reconhecem esse
nome como “a solução mais provável” do problema. E por que não? O nome “Nero César” não
apenas se encaixa em sentido numérico, como a
pessoa de Nero se adequa no contexto do drama de
João.
Mas agora: e quanto à besta impondo sua marca
aos homens?
A todos, os pequenos e os grandes, os ricos e os pobres, os
livres e os escravos, faz que lhes seja dada certa marca sobre
a mão direita ou sobre a fronte, para que ninguém possa
comprar ou vender, senão aquele que tem a marca, o nome
da besta ou o número do seu nome. (Ap 13.16,17)
Ao responder essa pergunta, devemos recordar a
natureza simbólica do Apocalipse e as imagens
paralelas em seu interior que parecem se basear em
uma prática do Antigo Testamento.
Em primeiro lugar, marcar homens a serviço da
besta não é um sinal mais literal que marcar os
servos do Cordeiro na próxima cena:
Olhei, e eis o Cordeiro em pé sobre o monte Sião, e com ele
cento e quarenta e quatro mil, tendo na fronte escrito o seu
nome e o nome de seu Pai. (Ap 14.1)
Em segundo lugar, essa marca parece uma metáfora
sobre o domínio e o controle exercidos pela fonte da
marca. Em Apocalipse 13, ninguém pode comprar
nem vender sem a marca. Isto é, todos os súditos do
Império Romano estão sob o domínio do imperador,
que, na realidade, detém o sustento deles em suas
mãos.
Em terceiro lugar, na exigência da besta por
adoração (Ap 13.4,8), assim demonstrando suas
presunções divinas, João apresenta essa alegação
pretenciosa de soberania contra o pano de fundo de
Antigo Testamento. Esse livro bastante orientado
pelo Antigo Testamento usa a marca na mão direita
e na fronte com imagem oposta à que Deus exigiu
de seu povo a respeito da lei por ele concedida:
Estas palavras que, hoje, te ordeno estarão no teu coração.
[…] Também as atarás como sinal na tua mão, e te serão por
frontal entre os olhos. (Dt 6.6,8)
Isso é sublinhado pelo fato descrito antes: o versículo seguinte apresenta os servos do Cordeiro
com uma marca na testa.
Em quarto lugar, qualquer marca dos dias de hoje
contraria o significado do curto prazo dado de João
(Ap 1.1,3; 22.6,10), a relevância para os cristãos
perseguidos do século I (Ap 1.9; 3.10; 6.9-11; 12.4-
6,17), o tema apresentando o juízo contra Israel (Ap
1.7) e a conexão da besta com a era dos primeiros
sete imperadores de Roma (Ap 17.9,10). Logo, a
procura da marca nos dias de hoje contraria o
contexto.
Como consequência, com esse imaginário da
marca João está ensinando que a besta (Nero)
desempenhará suas pretensões divinas, agindo como
soberano absoluto sobre a vida e o destino dos
súditos. Ela não imporá uma marca mais literal em
seus súditos do que Cristo nos seus. Isso é
imaginário fantasioso, não realidade literal.
Kenneth L. Gentry Jr. Apocalipse para leigos — você pode entender a profecia bíblica —. pg: 97 - 102
Kenneth L. Gentry Jr. Apocalipse para leigos — você pode entender a profecia bíblica —. pg: 97 - 102