Segundo as palavras de Jesus em Mateus 24, uma das características crescentes da época precedente à queda de Israel haveria de ser a apostasia dentro da Igreja Cristã. Isso foi mencionado anteriormente, mas um estudo mais concentrado nesse ponto lançará mais luz sobre várias questões relacionadas ao Novo Testamento – questões com freqüência concebidas de forma errônea.
Geralmente pensamos no período apostólico como um tempo de evangelismo explosivo e crescimento da Igreja, uma “idade de ouro” quando ocorriam milagres assombrosos todos os dias. Essa imagem comum é substancialmente correta, mas é defeituosa em vista de uma omissão proeminente. Tendemos a negligenciar o fato que a Igreja primitiva foi o cenário da aparição da heresia mais dramática na história do mundo.
A Grande Apostasia
A heresia começou a introduzir-se muito cedo no desenvolvimento da Igreja. Atos 15 registra a reunião do primeiro Concílio da Igreja, que foi realizada a fim de tomar uma decisão autoritativa com respeito à questão da justificação pela fé (alguns mestres tinham promovido a falsa doutrina que uma pessoa deveria guardar as leis cerimoniais do Antigo Testamento para ser justificado). Contudo, o problema não desapareceu; alguns anos depois, Paulo teve que tratar com ele novamente, em sua carta às igrejas da Galácia. Como disse S. Paulo, essa aberração doutrinária não era insignificante, pois afetava a própria salvação: era um “evangelho diferente”, uma deformação total da verdade, e equivalia a uma repudiação do próprio Jesus Cristo. Usando algumas das terminologias mais severas de sua carreira, Paulo pronunciou condenação sobre os “falsos irmãos” que ensinavam a heresia (veja Gálatas 1:6-9; 2:5, 11-21; 3:1-3; 5:1-12).
S. Paulo também previu que a heresia contagiaria as igrejas da Ásia Menor. Reuniu os presbíteros de Éfeso, e exortou-os a “atendei por vós e por todo o rebanho”, pois “eu sei que, depois da minha partida, entre vós penetrarão lobos vorazes, que não pouparão o rebanho. E que, dentre vós mesmos, se levantarão homens falando coisas pervertidas para arrastar os discípulos atrás deles” (Atos 20:28-30). Tal como S. Paulo tinha predito, a falsa doutrina se tornou um problema de proporções enormes nessas igrejas. No tempo em que o livro do Apocalipse foi escrito, algumas delas tinham chegado a estar quase completamente arruinadas por meio do progresso dos ensinos heréticos e a apostasia resultante (Apocalipse 2:2, 6, 14-16, 20-24; 3:1-4, 15-18).
Mas o problema da heresia não ficou limitado a uma área geográfica ou cultural. Ele se espalhou e se tornou um tema cada vez mais tratado pelo conselho apostólico e de vigilância pastoral com o avançar do tempo. Alguns hereges ensinavam que a ressurreição final já tinha acontecido (2 Timóteo 2:18), enquanto outros alegavam que a ressurreição era impossível (1 Coríntios 15:12); alguns ensinavam doutrinas estranhas de ascetismo e adoração a anjos (Colossenses 2:8, 18-23; 1 Timóteo 4:1-3), enquanto outros advogavam todo tipo de imoralidade e rebelião em nome da “liberdade” (2 Pedro 1-3, 10-22; Judas 4, 8, 10-13, 16). Repetidamente os apóstolos se viam forçados a repreender fortemente a tolerância para com os falsos mestres e “falsos apóstolos” (Romanos 16:17-18; 2 Coríntios 11:3-4, 12-15; Filipenses 3:18-19; 1 Timóteo 1:3-7; 2 Timóteo 4:2-5), pois estes tinham sido a causa do afastamento de muitos da fé, e a extensão da apostasia estava crescendo à medida que o tempo avançava (1Timóteo 1:19-20; 6:20-21; 2 Timóteo 2:16-18; 3:1-9, 13; 4:10, 14-16). Uma das últimas cartas do Novo Testamento, o livro de Hebreus, foi escrita a uma comunidade cristã que estava a ponto de abandonar completamente o Cristianismo. A Igreja Cristã da primeira geração não foi caracterizada somente pela fé e milagres; ela foi caracterizada também por uma crescente desobediência à lei, rebelião e heresia dentro da própria comunidade cristã – tal como Jesus tinha predito em Mateus 24.
A Grande Apostasia
Os cristãos tinham um termo específico para essa apostasia. Eles a chamavam de Anticristo. Muitos escritores populares têm feito especulações acerca desse termo, usualmente falhando em considerar seu uso na Escritura. Em primeiro lugar, considere um fato que sem dúvida assombrará algumas pessoas: a palavra “Anticristo” nunca ocorre no livro do Apocalipse. Nem uma só vez. Todavia, o termo é rotineiramente usado por mestres cristãos como um sinônimo de “a Besta” de Apocalipse 13. Obviamente, não há dúvida que a Besta é um inimigo de Cristo, e por isso é “anti” Cristo nesse sentido; meu ponto, contudo, é que o termo Anticristo é usado num sentido muito específico, e em sua essência não se relaciona com a figura conhecida como “a Besta” e “666”.
Um erro adicional ensina que “o Anticristo” é um indivíduo específico; relacionado com isso está a noção de que “ele” é alguém que aparecerá no final do mundo. Todas essas idéias, como a primeira, são contraditas pelo Novo Testamento.
De fato, as únicas ocorrências do termo Anticristo estão nos versículos abaixo, das cartas do apóstolo João:
Filhinhos, já é a última hora; e, como ouvistes que vem o anticristo, também, agora, muitos anticristos têm surgido; pelo que conhecemos que é a última hora.
Eles saíram de nosso meio; entretanto, não eram dos nossos; porque, se tivessem sido dos nossos, teriam permanecido conosco; todavia, eles se foram para que ficasse manifesto que nenhum deles é dos nossos.
Quem é o mentiroso, senão aquele que nega que Jesus é o Cristo? Este é o anticristo, o que nega o Pai e o Filho. Todo aquele que nega o Filho, esse não tem o Pai; aquele que confessa o Filho tem igualmente o Pai.
Isto que vos acabo de escrever é acerca dos que vos procuram enganar (1 João 2:18-19, 22-23, 26).
Amados, não deis crédito a qualquer espírito; antes, provai os espíritos se procedem de Deus, porque muitos falsos profetas têm saído pelo mundo fora.
Nisto reconheceis o Espírito de Deus: todo espírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne é de Deus; e todo espírito que não confessa a Jesus não procede de Deus; pelo contrário, este é o espírito do anticristo, a respeito do qual tendes ouvido que vem e, presentemente, já está no mundo.
Filhinhos, vós sois de Deus e tendes vencido os falsos profetas, porque maior é aquele que está em vós do que aquele que está no mundo. Eles procedem do mundo; por essa razão, falam da parte do mundo, e o mundo os ouve.
Nós somos de Deus; aquele que conhece a Deus nos ouve; aquele que não é da parte de Deus não nos ouve. Nisto reconhecemos o espírito da verdade e o espírito do erro (1 João 4:1-6).
Porque muitos enganadores têm saído pelo mundo fora, os quais não confessam Jesus Cristo vindo em carne; assim é o enganador e o anticristo.
Acautelai-vos, para não perderdes aquilo que temos realizado com esforço, mas para receberdes completo galardão.
Todo aquele que ultrapassa a doutrina de Cristo e nela não permanece não tem Deus; o que permanece na doutrina, esse tem tanto o Pai como o Filho.
Se alguém vem ter convosco e não traz esta doutrina, não o recebais em casa, nem lhe deis as boas-vindas.
Porquanto aquele que lhe dá boas-vindas faz-se cúmplice das suas obras más (2 João 7-11).
Os textos citados acima incluem todas as passagens da Bíblia que mencionam a palavra Anticristo, e delas podemos extrair várias conclusões importantes:
Primeiro, os cristãos já tinham sido advertidos sobre a vinda do Anticristo (1 João 2:18; 4:3).
Segundo, não há um único, mas “muitos Anticristos” (1 João 2:18). O termo Anticristo, portanto, não pode ser simplesmente uma designação de um indivíduo.
Terceiro, o Anticristo já estava atuando quando S. João escreveu: “também, agora, muitos anticristos têm surgido” (1João 2:18); “Isto que vos acabo de escrever é acerca dos que vos procuram enganar” (1João 2:26); “este é o espírito do anticristo, a respeito do qual tendes ouvido que vem e, presentemente, já está no mundo” (1João 4:3); “Porque já muitos enganadores entraram no mundo, os quais não confessam que Jesus Cristo veio em carne. Este tal é o enganador e o anticristo” (2João 7, RC). Obviamente, se o Anticristo já estava presente no primeiro século, ele não era alguma figura que surgiria no final do mundo.
Quarto, o Anticristo era um sistema de incredulidade, particularmente a heresia de negar a pessoa e obra de Jesus Cristo. Embora os Anticristos aparentemente alegassem pertencer ao Pai, eles ensinavam que Jesus não era o Cristo (1João 2:22); em união com os falsos profetas (1 João 4:1), negavam a encarnação (1João 4:3; 2João 7,9); e rejeitavam a doutrina apostólica (1João 4:6).
Quinto, os Anticristos tinham sido membros da Igreja Cristã, mas tinham abandonado a fé (1João 2:19). Agora esses apóstatas estavam tentando enganar outros cristãos, a fim de apartar de Jesus Cristo toda a Igreja (1João 2:26; 4:1; 2João 7, 10).
Colocando tudo isso junto, podemos ver que o Anticristo é uma descrição tanto do sistema de apostasia como de indivíduos apóstatas. Em outras palavras, o Anticristo era o cumprimento da profecia de Jesus que um tempo de grande apostasia chegaria, quando “muitos hão de se escandalizar, trair e odiar uns aos outros; levantar-se-ão muitos falsos profetas e enganarão a muitos” (Mateus 24:10-11). Como João disse, os cristãos tinham sido advertidos da vinda do Anticristo; e, certamente, “muitos Anticristos” surgiram. Por um tempo, eles creram no evangelho; mais tarde abandonaram a fé, e então começaram a tentar enganar a outros, quer iniciando novas seitas ou, o que é mais provável, procurando atrair cristãos para o judaísmo – a falsa religião que alegava adorar o Pai enquanto negava o Filho. Quando a doutrina do Anticristo é entendida, ela se encaixa perfeitamente com o que o restante do Novo Testamento fala sobre a época da “última geração”.
Um dos Anticristos que afligiu a Igreja primitiva foi Cerinto, o líder de uma seita judaica do primeiro século. Considerado pelos Pais da Igreja como “o Arqui-herege”, e identificado como um dos “falsos apóstolos” aos quais S. Paulo se opôs, Cerinto era um judeu que se uniu à Igreja e começou a afastar os cristãos da fé ortodoxa. Ele ensinava uma deidade menor, e não o Deus verdadeiro, que tinha criado o mundo (sustentando, com os gnósticos, que Deus era muito “espiritual” para se preocupar com a realidade material). Logicamente, isso significava também uma negação da encarnação, visto que Deus não tomaria para si mesmo um corpo físico e uma personalidade verdadeiramente humana. E Cerinto era consistente: ele declarou que Jesus tinha sido meramente um homem comum, não nascido de uma virgem; que “o Cristo” (um espírito celestial) tinha descido sobre o homem Jesus em seu batismo (capacitando-o a realizar milagres), mas então o deixou novamente na crucificação. Cerinto também advogava uma doutrina da justificação pelas obras – em particular, a necessidade absoluta de observar as ordenanças cerimoniais do Antigo Pacto para ser salvo.
Ademais, Cerinto foi aparentemente o primeiro a ensinar que a segunda vinda iniciaria um reino literal de Cristo em Jerusalém por mil anos. Embora isso fosse contrário ao ensino apostólico do reino, Cerinto alegou que um anjo tinha lhe revelado essa doutrina (assim como Joseph Smith, um Anticristo do século 19, afirmaria mais tarde ter recebido uma revelação angelical).
Os verdadeiros apóstolos se opuseram fortemente à heresia de Cerinto. S. Paulo admoestou as igrejas: “Mas, ainda que nós ou mesmo um anjo vindo do céu vos pregue evangelho que vá além do que vos temos pregado, seja anátema!” (Gálatas 1:8), e na mesma carta continuou refutando as heresias legalistas sustentadas por Cerinto. De acordo com a tradição, o apóstolo João escreveu seu evangelho e suas cartas com Cerinto especialmente em mente. (Somos informados que S. João entrou certa vez numa casa de banho público e reconheceu esse Anticristo diante dele. O apóstolo imediatamente deu meia-volta e correu, gritando: “Fujamos, não seja que desabe o edifício; pois Cerinto, o inimigo da verdade, está dentro!”).
Retornando às declarações de S. João sobre o espírito do Anticristo, devemos observar que ele enfatiza outro ponto, muito significante: segundo Jesus predisse em Mateus 24, a vinda do Anticristo é um sinal “do Fim”: “Filhinhos, já é a última hora; e, como ouvistes que vem o anticristo, também, agora, muitos anticristos têm surgido; pelo que conhecemos que é a última hora” (1 João 2:18). A relação que as pessoas geralmente fazem entre o Anticristo e “os últimos dias” é correta; mas o que é frequentemente ignorado é o fato que a expressão os últimos dias, e termos similares, é usada na Bíblia para referir-se, não ao fim do mundo físico, mas aos últimos dias da nação de Israel, os “últimos dias” que terminariam com a destruição do templo em 70 d.C. Isso, também, surpreenderá a muitos, mas devemos aceitar os ensinos claros da Escritura. Os autores do Novo Testamento sem dúvida usavam a linguagem os “últimos tempos” quando falando do período em que viviam, antes da queda de Jerusalém. Como temos visto, o apóstolo João disse duas coisas sobre esse ponto: primeiro, que o Anticristo já tinha vindo; e, segundo, que a presença do Anticristo era prova de que ele e seus leitores estavam vivendo na “última hora”. Em uma de suas primeiras cartas, S. Paulo teve que corrigir uma impressão errônea com respeito ao juízo vindouro sobre Israel. Os falsos mestres assustavam os crentes dizendo que o dia do juízo estava por vir sobre eles. S. Paulo lembrou aos cristãos o que ele tinha explicando antes:
Ninguém, de nenhum modo, vos engane, porque isto não acontecerá sem que primeiro venha a apostasia.. (2 Tessalonicenses 2:3).
No fim daquela época, contudo, enquanto João estava escrevendo suas cartas, a Grande Apostasia – o espírito do Anticristo, sobre o qual o Senhor tinha profetizado – era uma realidade.
S. Judas, que escreveu um dos últimos livros do Novo Testamento, deixa-nos sem dúvida sobre esse assunto. Fazendo fortes condenações contra os hereges que tinham invadido a Igreja e estavam tentando afastar os cristãos da fé ortodoxa (Judas 1-16), ele recorda aos seus leitores que eles já haviam sido advertidos sobre essa mesma coisa:
Vós, porém, amados, lembrai-vos das palavras anteriormente proferidas pelos apóstolos de nosso Senhor Jesus Cristo, os quais vos diziam: No último tempo, haverá escarnecedores, andando segundo as suas ímpias paixões. São estes os que promovem divisões, sensuais, que não têm o Espírito (Judas 17-19).
S. Judas claramente considera as advertências sobre os “encarnecedores” como se referindo aos hereges dos seus dias – significando que seus dias era o período do “último tempo”. Como S. João, ele sabia que a multiplicação rápida dos falsos irmãos era um sinal do Fim. O Anticristo tinha chegado, e já era a última hora.
Fonte: Capítulo 3 do excelente livro The Great Tribulation, de David Chilton.
Tradução: Felipe Sabino de Araújo Neto