Assim como existe somente um povo escolhido que forma uma única comunidade da aliança, existe somente um plano divino, caracterizado em Ef 2.15 como “a nova humanidade” criada por Deus. O argumento dispensacionalista de que Deus propôs um plano originalmente para Israel e que depois iniciou outro plano, entre parênteses, para a Igreja, plano esse que terminaria abruptamente no “arrebatamento”, carece de base bíblica e esquece do objetivo real do propósito de Deus.
Em primeiro lugar, ao contrário do que diz o argumento dispensacionalista de um plano original de Deus para Israel, a Escritura revela uma progressão do único plano divino para estabelecer por meio de Israel uma nova humanidade (Ef 2.15) numa nova Pátria (Rm 4.13; Hb 12.18,22). Esse plano progressivo começa no Paraíso perdido e termina no Paraíso restaurado.
A imagem bíblica é profunda e incisiva. Adão entra numa vida de pecado e é separado do Paraíso. É relegado ao descontentamento e a vagar separado da comunhão com o Criador. O mesmo capítulo que faz referência à Queda também registra o plano divino para a restauração da comunhão (Gn 3.15). O plano de Deus é definido como a promessa de Deus de fazer por meio de Abraão que “todos os povos da terra” sejam “abençoados” (Gn 12.3). O chamado de Abraão, portanto, constitui o antídoto divino para a Queda.
A promessa de Deus de que os filhos de Abraão herdariam a Terra Prometida era um passo preliminar no plano progressivo de Deus pelo qual Abraão e seus descendentes herdariam “uma pátria melhor, isto é, a pátria celestial” (Hb 11.16). O plano é melhor visualizado quando observamos Moisés dirigindo os descendentes de Abraão e tirando-os de seus 400 anos de escravidão no Egito. Depois peregrinaram por 40 anos no deserto. Deus habitou em meio ao povo e o preparou para a Terra Prometida. Do mesmo modo que Abraão, Moisés, no entanto, somente viu a promessa de longe.
O plano de Deus assume uma realidade concreta quando Josué dirige a conquista da Palestina. As peregrinações de Adão, Abraão e Moisés terminam quando Josué estabelece o povo na Terra Prometida (Js 21.43). Como diz Josué: “Vocês sabem, lá no fundo do coração e da alma, que nenhuma das boas promessas que o SENHOR, o seu Deus, lhes fez deixou de cumprir-se. Todas se cumpriram; nenhuma delas falhou” (Js 23.14).
Porém, assim como Adão caíra no Paraíso, os descendentes de Abraão cairiam na Palestina. Portanto, as palavras de Josué em sua despedida anunciaram uma trágica realidade: “Mas, assim como cada uma das boas promessas do SENHOR, o seu Deus, se cumpriu, também o SENHOR fará cumprir-se em vocês todo o mal com que os ameaçou, até eliminá-los desta boa terra que lhes deu. Se violarem a aliança que o SENHOR, o seu Deus, lhes ordenou, e passarem a cultuar outros deuses e a inclinar-se diante deles, a ira do SENHOR se acenderá contra vocês, e vocês logo desaparecerão da boa terra que ele lhes deu” (Js 23.15,16).
As “boas promessas” de Deus alcançaram seu apogeu durante o reinado de Salomão, cujo governo cobria a terra desde o rio Eufrates ao norte até o rio do Egito ao sul (1Rs 4.20,21; compare com Gn 15.18), mas mesmo assim a terra vomitou os israelitas do mesmo modo como havia feito com os cananeus antes deles. Durante os exílios assírio e babilônio, as peregrinações experimentadas por Adão foram também experimentadas pelos descendentes de Abraão.
No entanto, as promessas de Deus a Abraão não seriam anuladas. Palestina era somente uma fase preliminar da promessa patriarcal. Abraão não seria somente pai de uma nação, mas “pai de muitas nações” (Gn 17.5). Abraão seria “herdeiro do mundo” (Rm 4.13). O alvo da promessa não era a Palestina, mas o Paraíso restaurado.
Deus também prometeu a Abraão uma semente real. Josué dirigiu o povo de Israel à Terra da Promessa. Um dia Jesus dirigirá Seu povo ao Paraíso restaurado. Lá o povo de Deus entrará em seu descanso. Desde a rebelião de Adão até a semente real de Abraão, as Escrituras revelam um único plano de Deus para a humanidade. Em vez de uma sobreposição de dois planos divinos causada pela rejeição de Jesus pelos judeus, as Escrituras revelam o cumprimento do plano de Deus na crucificação. Porque somente mediante a fé na morte e na ressurreição de Cristo é que a única comunidade da aliança poderá encontrar o descanso de suas peregrinações (Hb 4.1-11). Em Cristo, o último Adão (1Co 15.45), as promessas de Deus encontram seu pleno cumprimento. Paulo coloca nestes termos: “E, se vocês são de Cristo, são descendência de Abraão e herdeiros segundo a promessa” (Gl 3.29).
Assim como não existe uma “sobreposição” de dois planos divinos, igualmente não existe um “parêntese” nos propósitos de Deus. O argumento dispensacionalista de que existe um parêntese no plano de Deus para Israel, e que esse parêntese é o plano de Deus para a Igreja, nada mais é do que o produto de uma leitura estranha e fantasiosa da Bíblia. O enfoque principal desse dogma dispensacionalista encontra-se numa interpretação incorreta do livro de Daniel. Tim LaHaye costuma dizer: “É impossível compreender a profecia da Bíblia sem compreender o livro de Daniel. Muitas informações a respeito de assuntos importantes e a sequência correta dos últimos dias encontram-se em Daniel”. Algo que os dispensacionalistas fazem questão de ressaltar, por exemplo, são as “setenta semanas” de Daniel (Dn 9.24-27).
De fato, LaHaye criou uma série de pressupostos a respeito das setenta semanas de Daniel. Ele afirma simplesmente que existe um lapso de 2000 anos (!) entre a semana 69 e a semana 70. E que esse lapso é o “parêntese” no qual está inserido o plano de Deus para a Igreja [41]. Finalmente, supõe que a Igreja era “um mistério oculto no Antigo Testamento (Rm 16.25,26; Ef 3.2-10; Cl 1.25-27)” e que “Israel, e não a Igreja, cumprirá seu destino nacional como uma entidade separada depois do arrebatamento e da Tribulação e durante o milênio”.
Deveria ser evidente a todos que essas invenções não são produto de uma leitura fiel do texto bíblico, mas sim o resultado de uma imaginação fértil! A própria ideia de que os profetas do Antigo Testamento não viram “o vale da Igreja” [43], que a Igreja “não existia antes de seu nascimento em Pentecostes” e que “terá um fim abrupto no arrebatamento” [44], é completamente falsa. Os profetas do Antigo Testamento não somente viram o “vale da Igreja” – eles anunciaram a Igreja! Pedro, falando no Pentecoste, disse: “De fato, todos os profetas, de Samuel em diante, um por um, falaram e predisseram estes dias” (At 3.24). O que os profetas do Antigo Testamento não viram nem anunciaram foi que a Igreja teria um “fim abrupto no arrebatamento”! Em outras palavras, a ideia de que a Igreja é um mero “parêntese” nos planos de Deus não tem o menor fundamento bíblico.
Finalmente, assim como não há uma sobreposição nem um parêntese no plano de Deus, também não há nenhum arrebatamento pré-tribulacionista.. Durante 1900 anos, a ideia de um arrebatamento pré-tribulacionista foi completamente desconhecida pela Igreja. Antes de Darby, os Irmãos de Plymouth acreditavam que o arrebatamento e a Segunda Vinda de Cristo eram eventos simultâneos. A invenção inovadora de Darby provocou o nascimento da ideia do arrebatamento da Igreja antes da Tribulação. Timothy Weber explica: “Antes de Darby, todos os pré-milenistas, inclusive os futuristas, criam que o arrebatamento aconteceria no fim da Tribulação, na Segunda Vinda de Cristo. Mas Darby viu o arrebatamento e a Segunda Vinda como dois acontecimentos separados. No arrebatamento, Cristo viria para seus santos, e na Segunda Vinda ele viria com os seus santos. Entre esses dois eventos aconteceria a Tribulação”.
Antes de Darby essa ideia nunca havia sido conhecida no corpo de Cristo. Harry Ironside, um dispensacionalista, desafiava aos que não aceitavam essa posição: “Procurem, assim como eu procurei, as declarações dos chamados Pais da Igreja, nos períodos anteriores e posteriores a Nicéia; os comentários teológicos dos eruditos; os escritores católico romanos de todas as correntes de pensamento; a literatura da Reforma; os sermões dos puritanos; as obras teológicas da atualidade, e perceberão a notável ausência desse mistério”. Ironside, a quem LaHaye considera como um de seus “heróis”, costumava, contraditoriamente, também dizer: “Quando você ouvir algo novo, examine-o cuidadosamente, porque pode ser um erro”.
LaHaye seguiu o conselho de seu “herói” e esforçou-se para tentar demonstrar que o arrebatamento pré-tribulacional da Igreja não é algo novo. Como evidência, menciona “a emocionante descoberta de uma declaração contida num sermão apocalíptico do século IV, de Pseudo-Efraim”, apresentada por Grant Jeffrey. Jeffrey disse que havia levado “uma década” procurando, mas que valeu a pena: “O texto efraimita revela uma declaração clara sobre o retorno pré-tribulacionista de Cristo para levar seus santos ao céu a fim de que escapem da Tribulação”.
Assim como LaHaye, o filósofo e teólogo Norman Geisler ficou emocionado com a descoberta de Grant Jeffrey. Para fortalecer sua posição dispensacionalista ele menciona uma declaração de Jeffrey que diz que “o manuscrito efraimita revela que a perspectiva pré-tribulacionista existia desde o século III”. Sua opinião é de que os primeiros Pais da igreja primitiva, “tais como Efraim da Síria, eram abertamente pré-tribulacionistas”. Portanto, assim como LaHaye, Geisler não aceita o argumento de que o conceito de arrebatamento pré-tribulacionista teve origem no século XIX. Segundo Geisler, quem pensa desse modo está cometendo um erro. As declarações de Geisler a esse respeito circulam amplamente como demonstração de autoridade final. Não obstante, seguindo a orientação do Dr. Ironside, seria bom “examinar cuidadosamente” o sermão efraimita para ver se depois de uma década de buscas, os dispensacionalistas realmente conseguiram encontrar um precedente histórico do arrebatamento pré-tribulacionista anterior ao século XIX.
Para começar, é instrutivo perceber que enquanto Norman Geisler atribui o sermão em questão a “Efraim da Síria”, no século III”, Tim LaHaye acredita que esse sermão pode ser de autoria de “um certo Pseudo-Efraim” que teria escrito “talvez entre os anos 565 e 627”. Sem importar quem de fato o escreveu e quando, podemos dizer com certeza absoluta que nenhuma tradição de arrebatamento pré-tribulacionista se originou nele ou se desenvolveu a partir dele. Ainda mais importante, como sabem os historiadores e os teólogos sérios, uma simples pesquisa nos escritos de Efraim revela que ele era pós-tribulacionista, e não pré-tribulacionista. Não somente isto, mas o próprio sermão apresentado pelos dispensacionalistas como “evidência” de suas ideias, utiliza claramente a tradição do arrebatamento pós-tribulacionista do verdadeiro Efraim.
Na verdade, é difícil imaginar que alguém, lendo esse sermão em seu contexto, consiga chegar à conclusão de que Efraim (ou Pseudo-Efraim) estivesse falando de um arrebatamento secreto antes da Tribulação, pois nesse mesmo sermão, o autor enfatiza que os cristãos deverão passar pela Grande Tribulação. De fato, o sermão menciona a necessidade de uma regeneração antes da Tribulação, e não de um arrebatamento antes da Tribulação.
Ainda que a “emocionante descoberta” do sermão apocalíptico do século IV de Efraim (ou Pseudo-Efraim?) tenha seu valor como uma peça de retórica, ainda assim não é lá muito relevante para a teologia cristã. O problema não está na autoria do documento, mas na exegese correta que é feita do mesmo. No entanto, mais do que a exegese correta desse documento, devemos preocupar-nos com a exegese correta dos textos bíblicos. Podemos começar com a Primeira Epístola de Paulo aos Tessalonicenses, numa passagem muito usada pelos dispensacionalistas para “comprovar” a teoria do arrebatamento pré-tribulacionista de Darby. LaHaye afirma: “Um dos eventos proféticos mais convincentes da Bíblia é o arrebatamento da Igreja. Ele é ensinado claramente em 1Ts 4.13-18, trecho no qual o apóstolo Paulo nos dá os melhores detalhes disponíveis”.
Do mesmo modo que a exegese do texto efraimita, uma exegese de 1Ts 4 mostra que Paulo não está pensando num arrebatamento pré-tribulacionista. A mensagem de Paulo referese à gloriosa esperança da ressurreição, e não num novo ensino a respeito de uma vinda secreta de Cristo, na qual Ele arrebatará a Igreja. Como todo erudito bíblico sabe, o ensino de Paulo em 1Ts 4 é paralelo ao seu ensino em 1Co 15. Ambos textos tratam da bendita esperança de que o fim ocorrerá quando Cristo voltar. Ele entregará o Reino a Deus Pai depois de ter destruído todo domínio, autoridade e poder. Quando soe a trombeta, estaremos com o Senhor para sempre.
O texto não diz em nenhum lugar que quando Cristo vier do céu “com a voz do arcanjo e o ressoar da trombeta de Deus” (1Ts 4.16), Ele se deterá no meio do caminho, mudará de direção e nos levará consigo às mansões celestiais, enquanto a terra mergulha no caos. Os tessalonicenses também não entenderam desse modo. O Dr. N. T. Wright observa: “Paulo apresenta a imagem de um imperador que está visitando uma província. Os cidadãos saem ao seu encontro em campo aberto e o escoltam até a cidade. A imagem de Paulo do povo ‘se reunindo com o Senhor nos ares’ deve ser lida assumindo-se que o povo imediatamente voltará com o Senhor para um mundo novo”.
Além disso, existe pouca justificativa para supor que a ideia do arrebatamento pré-tribulacionista se baseia numa “correspondência” entre o ensino de Cristo em Jo 14.1-3 e o ensino de Paulo em 1Ts 4.13-18. Ou seja, LaHaye erra mais uma vez ao utilizar as palavras do Salvador (“Não se perturbe o coração de vocês. Creiam em Deus; creiam também em mim. Na casa de meu Pai há muitos aposentos; se não fosse assim, eu lhes teria dito. Vou preparar-lhes lugar. E se eu for e lhes preparar lugar, voltarei e os levarei para mim, para que vocês estejam onde eu estiver”) pretendendo que elas sejam o primeiro ensino sobre o “arrebatamento pré-tribulacionista” nas Escrituras.
Ver desse modo toda uma cosmovisão em Jo 14 e 1Ts 4 segundo a qual duas terças partes do povo judeu serão erradicadas num massacre enquanto o povo de Jesus descansa despreocupadamente em mansões celestiais é, para dizer o mínimo, uma imposição preocupante de uma eisegese insana, que tem contaminado muitíssimos evangélicos. A imagem do Paraíso de Paulo ou a metáfora das mansões celestiais de Cristo não foram apresentadas para significar um refúgio temporário no céu enquanto a terra experimenta um holocausto de sete anos. Antes, representam a imagem gloriosa de “um novo céu e uma nova terra” nos quais “não haverá mais morte, nem tristeza, nem choro, nem dor, pois a antiga ordem já passou” (Ap 21.4).
Hank Hanegraaff. Desmascarando o Dogma Dispensacionalista. Traduzido e Adaptado por F.V.S. pg: 18-26