google.com, pub-7873333098207459, DIRECT, f08c47fec0942fa0 google.com, pub-7873333098207459, DIRECT, f08c47fec0942fa0 Escatologia Reformada

domingo, 12 de abril de 2020

Disitintivo Escatológico de Lutero - Parte 2




ANTICRISTO, SONO DA ALMA E RESSURREIÇÃO

À luz do entendimento geral de Lutero sobre a história da redenção, a restauração do evangelho e a percepção de que o fim está próximo, podemos notar três pontos adicionais de ênfase em seu pensamento escatológico. Primeiro, vamos considerar a identificação que Lutero fazia do papado com o anticristo, e, em segundo lugar, examinaremos sua opinião de que, após a morte, a alma“dorme ”até a ressurreição. Em terceiro lugar, discutiremos o entendimento singular de Lutero acerca da ressurreição e do segundo advento de Jesus Cristo como a esperança do cristão de escapa da ira escatológica de Deus no dia do juízo.

Embora no período medieval muitos tenham identificado papas individuais como sendo o anticristo, uma das contribuições mais significativas de Lutero para o pensamento escatológico protestante subsequente foi a identificação do ofício do papado como o trono do anticristo, assegurando que o papa é o fiel escudeiro do Diabo e a fonte de muitos dos incontáveis males que assolam os fiéis. Ao fazer essa identificação, Lutero afirmou que o que estava oculto no conflito secular entre Deus e o Diabo fora agora trazido à tona com o surgimento do anticristo, cuja derrota final marcaria o estágio derradeiro da história humana. Nos Artigos de Esmalcalde, de 1537, Lutero deixou sua opinião clara: O papa não é a cabeça de toda a cristandade por direito divino ou de acordo com a Palavra de Deus. [...] [Ao contrário], o papa é o verdadeiro anticristo que se levantou para se colocar no lugar de Cristo e fazer oposição a ele, pois o papa não permitirá que pessoas sejam salvas, exceto por seu próprio poder, o que não equivale a nada, uma vez que isso não é estabelecido nem ordenado por Deus. Esse é realmente aquele de quem o apóstolo Paulo diz que se exalta sobre e contra Deus.

E Lutero acrescentou: “Por que o papa está tão cheio de heresias e as introduziu uma após a outra no mundo? [...] Ele é e continua a ser o maior inimigo de Cristo. Ele é e continua a ser o verdadeiro Anticristo”. Novamente, ele declarou: “Cristo diz sim, mas o papa diz não. Uma vez que eles são tão opostos um ao outro, um deles certamente deve estar mentindo. Mas Cristo não mente, portanto, concluo que o papa é um mentiroso e, além disso, o verdadeiro anticristo”. Como Paul Althaus assinala, para Lutero,“os acontecimentos escatológicos estão ocorrendo no meio do presente. Porque o anticristo já está presente, Lutero espera e deseja que o fim venha num futuro próximo”. Além disso, Lutero “deseja isso”, porque a vinda de Jesus “trará fim ao anticristo e trará a redenção. Lutero chamava-o ‘o dia mais feliz’”.

Sem dúvida, a ênfase escatológica mais inovadora de Lutero foi o “sono da morte ”. Incontáveis pessoas de sua época estavam preocupadas com a morte e com questões relacionadas à natureza do estado intermediário e do paraíso – questões levantadas pela doutrina romana do purgatório. Quem vai para o purgatório e não para o inferno? Por quanto tempo as pessoas permanecerão lá antes de se tornarem suficientemente purificadas? Como os fiéis vivos poderiam encurtar o tempo que seus entes queridos passarão no purgatório? Havia até mesmo mapas topográficos disponíveis para dar respostas, e Lutero os conhecia.

A resposta de Lutero a esse temor e às dúvidas inquietantes foi contrapor com a certeza de que aqueles que morrem em Cristo estão seguros da vida eterna e da libertação futura da ira de Deus. Mas, se um cristão morrer antes do regresso do Senhor, Lutero ensinou que ele “descansa no seio de Cristo”, não em um estado de limbo. Usando a morte de Abraão como ilustração, Lutero escreveu: A morte dos santos é muito pacífica e preciosa aos olhos de Deus (Salmos 116:15) e [...] os santos não provam a morte, mas, mais agradavelmente, dormem (Isaías 57:1,2; 26:20). [...] Aos olhos do mundo, os justos são desprezados, repelidos e empurrados para o lado. Sua morte parece extremamente triste, mas eles estão dormindo um sono mais agradável. Quando deitam na cama e respiram pela última vez, eles morrem como se o sono estivesse caindo gradualmente sobre seus membros e sentidos.

De acordo com Köstlin, “a questão de importância principal é e permanece sempre para [Lutero] que a alma dos piedosos certamente ainda vive, está livre de toda angústia e tentação, e tem, na presença de Deus e na mão de Cristo, descanso seguro e abençoado ”. Mas o que ocorre com aqueles que dormem em Cristo? O que acontecerá com eles no último dia? Isso leva ao terceiro distintivo escatológico em Lutero: seu ensino sobre a ressurreição e o segundo advento de Jesus Cristo como a esperança do cristão de escapar da ira de Deus no dia do juízo.

Dos que dormem em Cristo, Lutero disse: “Assim como um homem que adormece e dorme profundamente até a manhã não sabe, quando acorda, o que aconteceu com ele, assim nós subitamente ressuscitaremos no último dia; e não saberemos como foi a morte ou como passamos por ela ”.O último dia, como Lutero entendia, tinha de vir logo, pois o anticristo havia sido revelado e o evangelho tinha sido pregado na maior parte da terra. Entretanto, a iniquidade também aumentaria, a despeito do fato de que a “dissolução do mundo está à porta”. Aqueles que estão em Cristo despertarão quando o corpo deles for ressuscitado e entrarão na vida eterna e na bem-aventurança que o Senhor lhes preparou, enquanto homens maus, juntamente com o Diabo e seus anjos, entrarão na morte eterna.

A base para o cristão despertar do sono quando Jesus retornar é para ser encontrada no batismo: “O nascimento espiritual é iniciado no batismo, prossegue e aumenta, mas somente nos últimos dias seu significado pleno ocorre. Somente na morte somos levados corretamente do batismo pelos anjos para a vida eterna ”.Lutero compreendeu o batismo na água como um batismo na morte de Jesus e no sepultamento com Jesus; assim, o ato de
nova criação dado no batismo é, portanto, progressivamente realizado até o retorno do Senhor. A nova criação alvoreceu no túmulo de Cristo e, pela fé, na pia batismal, e será consumada no último dia. Estar unidos a Cristo em sua morte e ressurreição implica a participação plena em Cristo
e na vida eterna na forma de ressurreição do corpo no último dia. “Cristo nos espera na morte e no fim do mundo”.

Para Lutero, então, o dia do juízo era aquele em que “haverá uma grande destruição. Então, os elementos serão reduzidos a cinzas, e o mundo inteiro retornará a seu caos primordial. Em seguida, novo céu e nova terra serão formados e seremos transformados”. Por Lutero compreender que um céu e uma terra recriados estão ligados ao retorno de Cristo, isso não deixou lugar para um futuro reino milenar de Cristo na Terra, em algum momento depois de ele retornar, e sim antes do dia de juízo final, quando o chamado reino milenar terminaria (ou seja, pré-milenismo). No último dia,

“Cristo aparecerá e se revelará de tal maneira que todas as criaturas saberão e verão que ele tinha poder sobre seus inimigos. [...] Mas ele pretendia se ocultar dessa maneira para se revelar no tempo de sua escolha”. É por isso que nós, os cristãos, devemos “agarrar-nos à Palavra e nos fortalecer na fé, na paciência e na esperança até a hora de sua glória, de seu poder e de nossa redenção chegar”. Então, citando Apocalipse 22:20, Lutero afirmou: “Possa nosso Senhor Jesus Cristo vir para aperfeiçoar a obra que ele começou em nós, e apresse o dia de nossa redenção para a qual, pela graça de Deus, ansiamos com mãos erguidas e pela qual suspiramos e esperamos com fé pura e com boa consciência”.

Enquanto os cristãos lutam sob os Anfechtungen desta vida e temem os horrores da ira vindoura de Deus no dia do juízo, o evangelho nos lembra de que somos simultaneamente justificados mesmo enquanto permanecemos na condição de pecadores. Fomos unidos à morte e à ressurreição de Cristo em nosso batismo e por nossa fé em sua promessa de que ele já derrotou o mundo, a carne e o Diabo. Se Cristo é nosso Juiz, então, vivemos com o conhecimento de que ele tomou nosso julgamento sobre si.


Barrett, Matthew Teologia da Reforma / tradução Francisco Nunes. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017. p. 1810 - 1818

domingo, 5 de abril de 2020

Distintivos Escatológicos de Lutero - Parte 1




HISTÓRIA REDENTORA, JUSTIFICAÇÃO E UM FIM IMINENTE

A igreja que Lutero procurava reformar era, em muitos aspectos, dominada pela visão medieval de que a graça aperfeiçoa a natureza e de que o reino de Deus se manifestava essencialmente nas instituições da igreja romana. A manifestação do reino de Deus, de fato, devia ser encontrada no dogma da igreja e na obra contínua de Deus nos ofícios e concílios da igreja. Tal igreja necessariamente estava acima e além de toda necessidade de uma reforma radical. Se a igreja e seu infalível magisterium possuíssem o exclusivo poder de amarrar e soltar, então, qualquer desenvolvimento histórico da igreja no futuro teria de estar ligado ao dogma e às decisões conciliares do passado. Nesse entendimento, a escatologia se preocupava principalmente com o futuro do relacionamento de Cristo com sua igreja, e a própria ideia de que a escatologia estava ligada à história era "totalmente estranha”.

A concepção de que o reino de Deus é manifesto em sua igreja explica a reação negativa àqueles que, à semelhança de Joaquim de Fiore, procuraram se concentrar nas últimas coisas à luz da história, e não da eclesiologia. Para combater essas aberrações problemáticas, Tomás de Aquino (1225–1274) não só criticou a escatologia especulativa de Joaquim, mas chegou até a afirmar que, quando a graça aperfeiçoar a natureza no tempo do fim, aquelas plantas e animais incapazes de tal perfeição deixarão de existir.43 Até a natureza humana será radicalmente transformada. Na avaliação de Torrance, “em última instância, a natureza se transforma em sobrenatureza, e a realidade terrena em realidade celestial”. 

Em grande medida, então, o pensamento escatológico dos reformadores deve ser encontrado em seu retorno à ênfase na história redentora lida através da lente da suficiência da Escritura como a última corte de apelação em todos os assuntos de doutrina. A revelação da obra redentora de Cristo na Palavra é essencialmente de natureza histórica, e esse renovado interesse pela história redentora levou os reformadores a olhar para além da síntese de Tomás de Aquino para antecedentes teológicos anteriores da igreja primitiva que os ajudassem a recuperar e a delinear seu entendimento do mandato missionário da igreja. Em contraste com a visão de Roma, os reformadores criam que o reino de Deus se manifestava pela pregação do evangelho, com os ministros enfocando a morte de Jesus como seu centro e a ressurreição do corpo como a esperança cristã. Esse entendimento também se opôs àqueles enfoques especulativos da escatologia de sua época que estavam preocupados com os sinais do fim e com interpretações fantásticas de textos bíblicos proféticos e apocalípticos.

Tanto Lutero quanto Calvino afirmaram que, na pessoa e na obra de Cristo, a nova criação já havia raiado e seria progressivamente revelada até o último dia, quando novo céu e nova terra se tornariam o lar eterno da justiça. Nas palavras de Torrance, em oposição a Roma e sua “interpretação docetista com respeito à redenção e à escatologia, os reformadores encontravam-se completamente indignados ”. A implicação dessa concepção “reformada ” da missão da igreja e de sua mensagem evangélica era que Deus trabalha na história e por meio dela no presente até Cristo voltar. A Palavra corretamente pregada e os sacramentos adequadamente administrados eram instrumentos do Espírito Santo para gerar a nova criação, que agora irrompe no presente. Em consequência, o reino de Deus era visto de forma dinâmica e tendo sido trazido pelo Espírito por intermédio da Palavra, em vez de estático e vinculado a concílios, tradições e instituições da igreja romana.

À medida que o pensamento de Lutero se desenvolvia nesse contexto, vemos uma cristalização de sua distinção entre o céu e a terra, juntamente com a antítese correspondente entre dois reinos divinamente ordenados – o da “graça” (reino de Cristo) e o do “ poder ” (o reino civil) – sobre os quais Jesus governa. A antítese de Lutero entre lei e evangelho, bem como entre pecado e graça, eram completamente escatológicas. A graça não transforma a natureza nesta vida, algo que Lutero conhecia bem de suas próprias lutas com as paixões pecaminosas da carne. A necessária transformação de sua alma não aconteceria muito em breve – Lutero compreendeu que morreria antes de ela ser concluída – e, mesmo assim, qualquer transformação que fosse realizada não poderia ajudá-lo a se tornar suficientemente justo diante de Deus para resistir ao juízo divino – algo que Luteria temia muito.

A solução para esse último problema é revelada por Deus no evangelho quando o pecador é declarado justo diante de Deus por meio da fé nos méritos de Cristo, para que seja libertado da ira escatológica de Deus no último dia. Justificação equivale a um veredito de “não culpado” no tribunal celestial, proclamado ao pecador pela Palavra muito antes da volta de Jesus Cristo no dia do julgamento (supondo que o retorno do Senhor ocorra muito tempo após a morte do pecador), quando o veredito de “não culpado” será finalmente completado na ressurreição do corpo e na vida eterna dos justificados. Isso não é uma mera ficção judicial, como Roma havia acusado Lutero de fabricar, pois a justiça que justifica os pecadores no presente é a do próprio Jesus, imputada ao pecador por meio do instrumento da fé, mas feita em antecipação ao veredito final de “não culpado”dado no dia do julgamento.

O dito de Lutero de que um pecador é simultaneamente um pecador e alguém considerado justo por meio da fé em Jesus Cristo, é inseparável de uma compreensão adequada da história redentora. A antítese entre lei e evangelho significa que o pecador justificado vive em dois “tempos”ou em duas “eras” : Portanto, o cristão está, dessa maneira, dividido entre dois tempos. Na medida em que é carne, ele está debaixo da lei; na medida em que é espírito, ele está sob o Evangelho. Sua carne sempre se apega à luxúria, à ganância, à ambição, ao orgulho etc. Assim, a ignorância acerca de Deus, a impaciência, os resmungos e a ira contra Deus são porque Deus obstrui nossos planos e esforços, e porque ele não castiga imediatamente os ímpios que o desprezam. Esses pecados se apegam à carne dos santos, portanto, se você não olhar para algo além da carne, permanecerá permanentemente sob o tempo da Lei. Mas esses dias foram abreviados, pois, caso contrário, nenhum ser humano seria salvo (Mateus 24:22). Um fim te de ser estabelecido para a lei, onde ela vai parar, portanto, o tempo da lei não é para sempre, mas tem um fim, que é Cristo. Contudo, o tempo da graça é para sempre, pois Cristo, morto uma vez por todas, nunca mais morrerá (Romanos 6:9,10). Ele é eterno; portanto, o tempo da graça também é eterno.

Por um lado, Lutero apontava que a vinda de Jesus Cristo marca uma ruptura fundamental com a antiga aliança. Por outro, o cristão ainda permanece na carne, sujeito às constantes exigências da lei, expondo o fato de que, mesmo aqueles que acolhem Cristo e são presentemente justificados, ainda permanecem pecadores. Lutero acreditava que, pelo fato de os justificados permanecerem “carne”, que Deus graciosamente encurtará os dias de luta até que Jesus Cristo volte para pôr fim à existência humana carnal, introduzindo a eterna era da graça. É nesse sentido, então, que a compreensão de Lutero sobre a salvação era completamente escatológica e era a base de sua expectativa de que o retorno de Cristo estivesse próximo.

O enquadramento escatológico de Lutero da doutrina da justificação também militou contra o apocalipticismo popular de sua época. Embora tenha previsto que o retorno de Jesus Cristo estava próximo, Lutero estava bem consciente do estabelecimento de datas por parte de seus contemporâneos anabatistas, muitos dos quais o rejeitaram por crerem que ele não fosse radical o suficiente. Ele não estava interessado em exterminar os ímpios da terra para fazer reformas. Muitos dos que ficaram desencantados com Lutero se voltaram para o mais radical Tomás Müntzer (1489–1525), que, juntamente com sua companhia de “profetas” ,foi banido de Zwickau e acabou preso por denunciar a aristocracia proprietária de terras e liderar seus seguidores na batalha para a conclusão da assim chamada Revolta Camponesa. Müntzer foi posteriormente decapitado.

Hans Hut, um ex-discípulo de Müntzer, previu que Jesus voltaria à terra no domingo de Pentecostes de 1528. Ele procurou reunir 144 mil santos eleitos “a quem ele ‘selou ’marcando-os na testa com o sinal da cruz”. Hut morreu em 1528 e seu “corpo carbonizado (ele tinha incendiado sua cela em um esforço fútil para escapar) foi condenado postumamente”. De modo similar, Melquior Hoffmann estabeleceu local e data para o retorno do Senhor (Estrasburgo, em 1534), e isso também não aconteceu.

Aceitando a interpretação que Agostinho fizera de Apocalipse 20, Lutero cria que, pouco antes do tempo do fim, Satanás seria solto por um breve período antes que o Senhor voltasse para destruir suas obras e lançá-lo no lago de fogo (v. 7–10). Quando, em 1523, soube que os dois primeiros mártires da Reforma foram queimados em Bruxelas, Lutero não se surpreendeu e compreendeu isso como uma manifestação da derrota final de Satanás. Lutero até expressou tristeza por tal martírio não lhe ter sido concedido, pois ele se opunha ao Diabo com grande paixão.



Barrett, Matthew. Teologia da Reforma /  tradução Francisco Nunes. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017. 704 p. 1801-1810 

quinta-feira, 5 de março de 2020

Escatologia de Acordo com Ulrico Zuínglio e Martin Bucer




Embora Ulrico Zuínglio, de Zurique (1484–1531) e Martin Bucer, de Estrasburgo (1491-1551), da primeira geração de reformadores, tenham sido ofuscados dentro da tradição reformada por Calvino, eles merecem uma breve menção. À semelhança do que fez Lutero nos anos iniciais de sua carreira, Zuínglio também questionava a canonicidade de Apocalipse, e, seguindo Lutero e Calvino, rejeitava inflexivelmente a doutrina romana do purgatório, chamando-a de “invenção sem fundamento”. Assim como Calvino, Zuínglio afirmava que a doutrina anabatista do sono da alma era contrária à Escritura e que ela“ contradiz toda a razão”. E, no artigo 12 de Ratio Fidei (1530), afirmou a existência do inferno como um lugar de castigo eterno, tanto contra a visão romana do purgatório como sobre o ensino de vários grupos anabatistas de que Deus concederia o perdão universal no tempo do fim.

Martin Bucer publicou o texto mais importante da era da Reforma sobre a teologia política, mas com importantes implicações escatológicas: De Regno Christi [O reino de Cristo], em 1550. Neste volume, Bucer definiu o reino de Cristo da seguinte maneira: O reino de nosso Salvador Jesus Cristo é aquela administração e cuidado da vida eterna dos eleitos de Deus, à qual esse mesmo Senhor e Rei dos Céus, por sua doutrina e disciplina, administrada por ministros adequados escolhidos para esse exato propósito, reúne a si seus eleitos, aqueles dispersos pelo mundo que são seus, mas que ele, ainda assim, quis que estivessem sujeitos aos poderes deste mundo. Ele os incorpora a si e à sua igreja, e assim os governa nela, os quais, purgados mais plenamente, dia a dia, de pecados, vivam bem e felizes tanto aqui como no tempo vindouro.

A distinção que Bucer faz entre o reino de Cristo e os poderes do mundo tem uma forte semelhança formal com a distinção de “dois reinos” feita por Lutero entre o reino de graça (reino de Cristo) e o reino de poder (o reino civil). No entanto, segundo Bucer, esses dois reinos estão unidos como o corpo de Cristo mediante a Palavra e o Espírito. Como tal, o reino de Cristo é “ visível e efetivamente realizado na Igreja na Terra, e, pela obediência ao testemunho da igreja, também no Estado”. A maneira pela qual os eleitos de Deus são incorporados ao corpo de Cristo, sua eleição para a salvação será evidente no desenrolar contínuo da história no meio das potências mundanas conforme eles“ vivem bem e felizes” até aquele tempo em que Jesus Cristo retorna para consumar seu reino que está sempre se revelando. Para Lutero, por outro lado, esse reino vem pelo ato de proclamar o evangelho, não por seus efeitos.

Em exílio na Inglaterra à época – Bucer havia se tornado Régio Professor de Divindade em Cambridge, em 1549, a convite de Thomas Cranmer (1489–1556), quando este fora exilado de Estrasburgo – e sua obra De Regno foi concebida como um modelo para a reforma na Inglaterra. O livro foi apresentado ao jovem rei Eduardo VI quando de sua publicação, em 1551, mas ambos morreram pouco depois: Bucer no mesmo ano e Eduardo em 1553. Sem dúvida, a morte precoce de Eduardo afetou negativamente a intenção anterior de Bucer de prover uma base teológica para o trabalho em andamento de reforma cívica na Inglaterra.

Embora não seja uma obra de escatologia per se, De Regno, ilustra o pensamento antiapocalíptico de grande parte da antiga tradição reformada, que considerava que o futuro reino de Jesus Cristo se realiza na contínua atividade de Deus por meio da igreja e de sua missão divinamente designada de pregar, administrar os sacramentos e disciplinar seus membros. Essa fidelidade, por sua vez, leva à consequente transformação da sociedade na qual a igreja é fiel a sua missão. Quando o reino de Cristo é definido nesses termos (ou similares), a escatologia se torna uma preocupação atual, além de uma esperança futura.39 Esse sentimento foi ecoado por Calvino, que observou: “O primeiro efeito do reino de Deus é domar os desejos de nossa carne. E agora, conforme esse reino aumenta, passo a passo, até o fim do mundo, devemos orar cada dia por sua vinda”.

Ao nos voltarmos para as opiniões escatológicas distintivas de Lutero e Calvino, não devemos perder
de vista o fato de que as opiniões desses reformadores sobre tais assuntos são substancialmente as mesmas. Ambos se enquadram na designação moderna de amilenistas (isto é, que os mil anos de Apocalipse 20 são uma descrição da era atual até o retorno do Senhor, não uma esperança escatológica futura, como no pré e no pós-milenismo), e ambos viam o segundo advento de Jesus Cristo, a ressurreição corporal no fim dos tempos e a libertação dos cristãos do julgamento escatológico final de Deus como a única segura e certa esperança do cristão no meio das lutas desta vida. É à luz de tão grande medida de concordância que podemos discutir seus distintivos escatológicos.

Ao mesmo tempo em que reconhece que a “linha [que os separa] não deve ser desenhada de forma muito acentuada”, Torrance observa que suas diferenças surgem em parte por conta das circunstâncias históricas e porque recorreram a fontes diferentes dentro da tradição cristã. O foco escatológico de Lutero, diz Torrance, centrou-se no julgamento final, ao se basear em certos pais da igreja latina, como Cipriano, que estavam preocupados com “a decadência e o colapso do mundo”. A ênfase de Calvino estava mais na ressurreição do corpo e no reordenamento do mundo, recorrendo à ênfase dos pais gregos sobre a encarnação como a base para a renovação de todas as coisas. Embora a afirmação de Torrance acerca dos discerníveis pedigrees intelectuais latino-gregos de Lutero e Calvino seja discutível, considero correta em sua maior parte a percepção de Torrance sobre a diferença de ênfase entre os dois reformadores.


Barrett, Matthew. Teologia da Reforma /tradução Francisco
Nunes. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017. p: 1795 - 1801

domingo, 9 de fevereiro de 2020

Oséias 6.7



A segunda passagem em que o termo “aliança” pode ser aplicado à ordem da criação declara que o povo de Israel, “como Adão”, transgrediu a aliança.

Essa declaração pode ser entendida basicamente de três maneiras diferentes.

Em primeiro lugar, tem sido sugerido que “Adão” deve ser entendido como um lugar. “Em Adão” Israel quebrou a aliança.

Essa interpretação é difícil de ser sustentada. Somente puras suposições podem prover ocasião concreta de pecado nacional em Adão, localizado sobre o Jordão, cerca de 12 milhas ao norte de Jericó. A narrativa do refluxo do Jordão até Adão não faz referência a um pecado por parte de Israel (cf. Js 3.16).

Além disso, essa interpretação pareceria requerer uma emenda ao texto massorético. O texto como se encontra não diz “em Adão” mas “como Adão”.

A interpretação mais tradicional vê na frase “como Adão” uma referência explícita ao pecado do primeiro homem. Essa interpretação é a mais direta, e oferece menor numero de dificuldades. Assim como Adão transgrediu o arranjo da aliança estabelecida pela criação, assim Israel transgrediu a aliança ordenada no Sinai.

O terceiro modo possível de se ler essa frase sugere que Israel quebrou a aliança “como homem” ou “como humanidade”. “À semelhança dos homens”, Israel quebrou a aliança.

É difícil decidir entre estas ultimas duas interpretações. Mas em qualquer dos casos, algo estaria implicado a respeito do relacionamento do homem não-israelita com o seu Deus criador.

O ponto focal da passagem repousa numa comparação. O homem israelita (cf v. 4: “Efraim e Judá”) no seu relacionamento com Deus é comparado ao homem não-israelita na sua relação com Deus. Israel transgrediu a aliança. Quanto a isso, Israel é “como o homem” em geral ou “como Adão” em particular. Em qualquer dos dois casos, estaria implicado que uma relação de aliança existia entre Deus e o homem não-israelita. Como o homem não-israelita quebrou a aliança, assim o israelita a quebrou.

Em que sentido pode-se afirmar que o homem não-israelita permanece numa relação de aliança com Deus que pode ser quebrada? Não há nas Escrituras nenhuma menção a uma aliança especifica com o homem fora de Israel, exceto a aliança de Deus com Noé, à qual falta ênfase adequada aos elementos específicos de obrigação de aliança para Oséias dizer com clareza convincente que o homem “quebrou” a aliança.

Oséias evidentemente pretende sugerir que Deus estabeleceu uma relação de aliança com o homem fora de Israel mediante a criação. Se “Adão” é tomado individualmente, o termo se referia ao homem representativo original. Sua violação da aliança se referiria à falha especifica do teste de prova descrito nos primeiros capítulos de Gênesis. Se “Adão” é tomado genericamente, o termo se referiria a uma obrigação de aliança mais ampla que caiu sobre o homem quando lhe foram dadas responsabilidades solenes no mundo de Deus pela criação. Em qualquer desses dois casos, Oséias 6.7 pareceria aplicar terminologia de aliança ao relacionamento de Deus com os homens, estabelecido pela criação.

Para resumir o argumento a favor de ver a relação de Deus com o homem antes de Noé como tendo caráter de aliança, a despeito da ausência do uso explicito do termo “aliança” nos primeiros capítulos de Gênesis, dois pontos foram notados até aqui: primeiro, o relacionamento de Deus com Davi não foi referido como tendo caráter de “aliança” originalmente, mas, não obstante, teve caráter de aliança em substância; e, em segundo lugar, Jeremias 33.20ss e Oséias 6.7 claramente se referem ao relacionamento criador original de Deus em termos de aliança.

Em terceiro lugar, os elementos essenciais à existência de uma aliança estavam presentes no relacionamento de Deus com o homem antes de Noé, a despeito da ausência do termo “aliança” nos primeiros capítulos da narrativa de Gênesis. É a presença desses elementos que, afinal de contas, é determinante para a questão. As profecias messiânicas aparecem na Escritura muito antes de ocorrer o termo “messias”. As realidades do Reino de Deus na terra manifestam-se milhares de anos antes dos temos “rei” e “reino” aparecerem nas Escrituras para designar o relacionamento de Deus com a sua criação.

A mesma situação prevalece com relação ao termo “aliança”. Se os elementos essenciais para a caracterização de uma relação como de “aliança” estão presentes, o relacionamento sob consideração pode ser designado como tendo caráter de aliança, a despeito da ausência formal do termo.

E é exatamente essa circunstância que aparece nos primeiros capítulos de Gênesis. Um vínculo de vida e morte está claramente presente entre Deus e o homem recentemente criado (Gn 2.15-17). Se Adão se abstivesse de comer o fruto proibido, viveria. Se, porém, comesse da arvore do conhecimento do bem e do mal, morreria. Esse relacionamento de Deus com o homem é soberanamente administrado.

Subsequentemente, um vínculo de vida e morte foi estabelecido entre Deus e o homem depois da queda no pecado. De modo soberano, o Senhor obrigou-se a estabelecer inimizade entre a semente da mulher e a semente de Satanás (Gn 3.15). Esse compromisso divino fixou o palco para uma luta de vida e morte. O vínculo de Deus com o homem decaído resultou em vida para a semente da mulher e em morte para a semente de Satã.

A presença de todos os elementos essenciais à existência de uma aliança nesses relacionamentos de Deus com o homem antes de Noé fornece base adequada para a designação dessas circunstâncias como “aliança”. Embora o termo “aliança” possa não aparecer, a essência de uma relação de aliança certamente está presente.

Essencialmente, é essa substância basicamente relativa à aliança do status criado do homem que justifica o uso da terminologia relativa à aliança para descrever o relacionamento do homem com Deus antes de Noé. Em total soberania, Deus estabeleceu uma relacionamento. Esse relacionamento envolvia um compromisso de vida e morte.

Pela criação, Deus une-se ao homem em relação de aliança. Depois da queda do homem no pecado, o Deus de toda a criação graciosamente uniu-se ao homem outra vez mediante a promessa de redimir um povo para si mesmo da humanidade perdida. Da criação à consumação, o vínculo da aliança tem determinado a relação de Deus com o seu povo. A extensão das alianças divinas vai do princípio do mundo ao fim dos tempos.


Cristo dos Pactos / O. Palmer Robertson. Trad. Américo J. Ribeiro. Campinas - SP: Luz Para o Caminho, 1997. pg: 23-25

terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

Lutero e Calvino Como Figuras-Chaves na Escatologia



Antes de considerar as respectivas visões escatológicas de Martinho Lutero e de João Calvino, é importante explicar por que limitamos o escopo deste capítulo a Lutero e Calvino como representantes da “escatologia dos reformadores”. Há três razões para fazer isso. A primeira é que Martinho Lutero (nascido em 10 de novembro de 1483) e João Calvino (nascido em 10 de julho de 1509) são representativos das duas primeiras gerações de reformadores. Lutero era 26 anos mais velho que Calvino e representa a primeira geração dos envolvidos no trabalho de reforma (incluindo Philip Melanchthon, Ulrico Zuínglio e Martin Bucer), enquanto a vida e o trabalho de Calvino foram conduzidos sob a enorme sombra do marco evangélico de Lutero de outubro de 1517.

A segunda razão é que os dois homens tinham temperamentos completamente diferentes e trabalhavam em circunstâncias diferentes. Lutero era um reformador no verdadeiro sentido do termo, dedicando sua vida à pregação, ao ensino e à escrita. É bem conhecida a luta de Lutero com um profundo conflito interior (Anfechtungen) em uma vida presa entre o medo existencial da ira eterna de Deus e a bem-aventurada boa-nova do evangelho pela qual o Espírito Santo uniu os cristãos a Jesus Cristo, cuja vitória sobre o pecado e a sepultura em sua cruz e na ressurreição era a única verdadeira esperança, tanto nesta vida como na vindoura. Lutero escreveu: Quanto mais tempo o mundo permanece, pior fica. […] Quanto mais pregamos, menos atenção as pessoas dão, […] empenhadas em aumentar a maldade e a miséria a uma velocidade esmagadora. Nós clamamos e pregamos contra isso. […] Mas de que serve? No entanto, faz o bem de podermos esperar que o último dia chegue em breve. Então, os ímpios serão lançados no inferno, mas obteremos a salvação eterna nesse dia. […] Assim, podemos esperar confiantemente que o último dia não está longe.

Calvino, o pastor, também lutou com um profundo sentimento de desespero, expresso em uma notável seção das Institutas dedicada à “meditação sobre a vida futura”. Ele exortou os cristãos a desistirem de todos os acréscimos indevidos às coisas deste mundo, que empalideciam à luz do vindouro. Ao mesmo tempo, as lutas associadas à vida em um mundo caído também devem ser consideradas à luz da esperança inabalável dada por Deus, por meio da ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos e sua ascensão à destra do Pai, aos cristãos que estão nesse conflito. Calvino disse: “Quando, pois, com nossos olhos fixos em Cristo esperamos pelo céu, e nada na terra os impede de nos levar à bem-aventurança prometida, a declaração é verdadeiramente cumprida, de que ‘onde está nosso tesouro, aí nosso coração está’ [Mateus 6:21]”. Calvino escreveu que os cristãos devem esperar pacientemente a restauração final de todas as coisas no retorno de Cristo, assim como uma sentinela fielmente guarda seu posto até ser chamada de volta por seu comandante. Ele descreveu essa luta como viver no exílio, longe de sua pátria amada: Que o objetivo dos cristãos em julgar a vida mortal seja que, embora compreendam que ela não é nada mais do que miséria, entreguem-se, com maior zelo e prontidão, inteiramente a meditar na vida eterna que está por vir. Quando se chega a essa comparação com a vida futura, a vida presente não só pode ser seguramente negligenciada, mas, em comparação com a primeira, deve ser totalmente desprezada e detestada. Pois, se o céu é nossa pátria, o que mais é a terra senão nosso lugar de exílio?

Em seu comentário sobre a Primeira Carta de Paulo a Timóteo, Calvino acrescentou: “O único remédio para todas essas dificuldades é olhar para a manifestação de Cristo e sempre confiar nela”. Os exilados perseveraram em sua peregrinação por manter sempre em vista a alegria de voltar para casa.

A terceira razão é que esses dois reformadores são as figuras seminais nas duas maiores tradições da Reforma: a luterana e a reformada. Embora certamente tenha havido desenvolvimentos teológicos em ambas as tradições, como o fato de a tradição luterana ter modificado para um “sono" o entendimento de Lutero sobre o estado intermediário, ambos os reformadores estão no nascedouro (ou no caso específico de Calvino, próximo deste) de tradições dogmáticas confessionais e eclesiásticas de quase quinhentos anos que estão identificadas com eles. Lutero e Calvino servem como representantes aptos da escatologia dos reformadores.


Matthew Barrett. Teologia da Reforma. Tradução Francisco Nunes. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017. pg 1791-1795




quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Apocalipticismo Tardo-Medieval e os Reformadores Radicais



Outra razão dada para explicar por que os reformadores não trataram extensivamente de escatologia é que eles estavam tão desanimados com o extremismo da apocalíptica do período tardo- medieval, bem como o encontrado entre os seus contemporâneos anabatistas, que evitaram o assunto. Embora os pontos de vista escatológicos dos anabatistas radicais fossem de fato altamente especulativos, os reformadores não os ignoraram. De fato, Lutero foi influenciado por ideias e suposições proféticas do fim do período medieval, incluindo a percepção de que o julgamento final estava próximo, como o ponto culminante da luta de eras entre Deus e o Diabo. Conforme Lutero aprofundava essa expectativa ao longo de sua carreira, ele veio a entender que a redescoberta do evangelho era o ponto de virada crítico nessa guerra cósmica abrangente.

A concepção de que a história estava entrando numa terceira e última fase, a era do Espírito Santo, também se difundiu na Alta Idade Média, na qual as expectativas escatológicas foram aumentadas e os cálculos proféticos especulativos eram comuns. A “busca do milênio” (típico de apocalipticismo) brotou na Era da Reforma, mas especialmente entre os chamados “reformadores radicais”, que foram
influenciados em diferentes graus por Joaquim de Fiore (c. 1135–1202) e os Franciscanos Espirituais. Embora cada vez mais convencido de que o fim estava perto, Lutero rejeitou os elementos especulativos desses movimentos, incluindo a “terceira dispensação”, de Joaquim. No entanto, em 1541, Lutero publicou Suppatio annorum mundi [Cronologia do mundo], na qual argumentou que o ano de 1540 era o 5.500o ano após a criação e, embora tenha calculado que faltassem outros quinhentos anos até que o sábado eterno começasse, marcando o 6.000o ano de criação, concluiu que o Senhor prometera encurtar os dias por causa dos eleitos e poderia voltar em breve. 

Embora rejeitasse os elementos radicais da apocalíptica medieval, Lutero era completamente escatológico em sua perspectiva teológica, vendo a escatologia como entrelaçada com a revelação da
história humana. O foco de Lutero em solus Christus na doutrina da justificação pela fé deu a orientação para toda sua teologia, incluindo seu entendimento dos tempos do fim. Como o pecador justificado é libertado da ira de Deus e da punição eterna, a doutrina da justificação, que era o coração do recém-recuperado evangelho, dirige toda a história em direção a seu objetivo final. É a pregação contínua da lei e do evangelho – hostil aos cegos à verdade – que provoca grande parte da convulsão e do conflito que o povo de Deus enfrentará até o fim da história por parte do Diabo e daqueles a quem este cegou. Somente então a vitória de Jesus Cristo sobre o pecado, a morte, o Diabo, a lei e a ira de Deus será gloriosamente manifesta.

OS “ÚLTIMOS DIAS” E A REFORMA DA IGREJA 

Em contraste, portanto, à suposição generalizada de que osreformadores não se preocupavam com a
escatologia,seu trabalho de reforma era profundamente influenciado pela compreensão da  era em que viviam. De acordo com Timothy George: Apesar de todo o seu esforço em retornar à igreja primitiva do Novo Testamento e da idade patrística, a Reforma foi essencialmente um movimento voltado para o futuro. Foi um movimento dos“últimos dias” que viveu uma intensa tensão escatológica entre o “não mais” da antiga dispensação e o “ainda não” do reino de Deus porse consumar. Nenhum dos reformadores [...] abraçou muito as escatologias apocalípticas radicais que floresceram no século XVI. [...] Cada um deles estava convencido de que o reino de Deus estava irrompendo na história nos eventos dos quais ele [Deus] foi levado a fazer parte. Imbuído desse senso de urgência escatológica, em 1543 Calvino escreveu o seguinte a Carlos V, imperador do Sacro Império Romano: “A Reforma
da Igreja é obra de Deus e é tão independente da vida e do pensamento humanos como o é a ressurreição dos mortos ou qualquer outra obra”.

Os reformadores viram-se como partícipes de uma obra vital de Deus: a reforma da igreja. Pelo fato de acreditarem ser meros instrumentos nos propósitos soberanos de Deus, eles entenderam os tempos do fim na perspectiva presente, o “agora”revelando-se diante de seus próprios olhos. Lutero reclamou que a igreja romana e seus líderes estavam contentes em esperar pelo juízo final para a reforma da igreja e colocou o assunto como só ele poderia: “Em Roma, são necessários dois homens para uma reforma, ‘um para ordenar o bode e o outro, para segurar a peneira".

Em um comentário sobre Gálatas 4:6, Lutero descreveu seu foco no trabalho que Deus lhe dera: “Começamos a demolir o reino do anticristo, mas eles provocarão Cristo para apressar o dia de sua vinda gloriosa, quando ele abolirá todos os principados, potestades e forças, e colocará todos os seus inimigos debaixo de seus pés ”. Na estimativa de Lutero: “Estes últimos dias já começaram, e [...] portanto, as ‘últimas coisas começaram em nosso tempo histórico, de modo que o relógio escatológico começou a marcar”. A escatologia não é algo a ser relegado para o futuro distante, conforme testifica a contínua obra de redenção de Deus nos direciona ao fim dos tempos, que se desdobram até o retorno do Senhor.

Se os reformadores não reescreverem o dogma estabelecido da igreja com respeito aos tempos finais – em que Jesus há de retornar no fim da era para julgar o mundo, ressuscitar os mortos e estabelecer novo céu e nova terra –, eles certamente o modificaram um pouco e incorporaram seu entendimento escatológico em suas polêmicas e teologia pastoral, bem como em seus escritos dogmáticos.


Barrett, Matthew. Teologia da Reforma. Tradução Francisco Nunes. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017. p.1785-1791

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Novos Céus e Nova Terra



Muitos hoje duvidam que haja vida após a morte. Zombam daqueles que creem na vida eterna, dizendo que nossa esperança quanto ao céu é meramente a projeção de nossos desejos. Questionam o fundamento de nossa confiança de que o mundo vindouro será melhor do que este.

Nossa resposta como cristãos é o testemunho de Cristo, tanto de sua ressurreição quanto de seu ensino. Jesus disse: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá” (Jo 11.25). No discurso do cenáculo, na noite de sua traição, Jesus disse: “Não se turbe o vosso coração; credes em Deus, crede também em mim” (Jo 14.1). Ele começou seu discurso com um imperativo: “Não...” Um imperativo significa uma obrigação. Somos ordenados a não ficarmos turbados de coração no que diz respeito ao nosso futuro no céu. Jesus também disse:

Na casa de meu Pai há muitas moradas. Se assim não fora, eu vo-lo teria dito. Pois vou preparar-vos lugar. E, quando eu for e vos preparar lugar, voltarei e vos receberei para mim mesmo, para que, onde eu estou, estejais vós também. E vós sabeis o caminho para onde eu vou (vv. 2-4).

Jesus estava com seus discípulos, mas logo seria removido do meio deles, e eles ficaram ansiosos. Jesus lhes ofereceu consolo, reafirmando sua certeza com estas palavras: “Se assim não fora, eu vo-lo teria dito. Pois vou preparar-vos lugar”. Em outras palavras, se o céu fosse uma esperança falsa à qual os discípulos estavam apegados, Jesus teria corrigido o erro deles. No entanto, tudo é verdadeiro, e Jesus estava indo adiante dos discípulos para lhes preparar lugar. Esta é a promessa de Cristo para seu povo: para todo aquele que crê em Cristo, há um lugar preparado na casa de seu Pai. Portanto, temos motivo para sermos confiantes quanto à realidade do céu.

ALEGRIA PROMETIDA

Na primeira epístola de João, obtemos alguns discernimentos sobre o nosso estado futuro:

Vede que grande amor nos tem concedido o Pai, a ponto de sermos chamados filhos de Deus; e, de fato, somos filhos de Deus. Por essa razão, o mundo não nos conhece, porquanto não o conheceu a ele mesmo. Amados, agora, somos filhos de Deus, e ainda não se manifestou o que haveremos de ser. Sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque haveremos de vê-lo como ele é. E a si mesmo se purifica todo o que nele tem esta esperança, assim como ele é puro (1 Jo 3.1-3).

Este é um dos mais importantes, senão o mais importante, textos escatológicos do Novo Testamento. Promete aos crentes que desfrutaremos o ápice da felicidade no céu, “a visão beatífica” ou a visio Dei. A palavra beatífica vem da mesma palavra-raiz da qual temos a nossa palavra beatitude. As beatitudes são as afirmações de Jesus em seu Sermão do Monte, nas quais Jesus pronunciou oráculos de bênção (Mt 5.3-12). São promessas de bênção, um grau de felicidade que transcende qualquer prazer ou felicidade terrena. Quando Deus dá bem-aventurança a uma alma, isso é gozo e satisfação supremos. Essa bem-aventurança é vista aqui, em 1 João, na visão beatífica. É tão maravilhosa que a própria visão traz consigo mesma a plenitude da bênção.

A visão beatífica é a visão de Deus. João afirmou que não sabemos ainda o que seremos no céu, mas uma coisa nós sabemos: seremos semelhantes a ele, porque o veremos como ele é. Nós o veremos como ele é em si mesmo. Seremos capazes de ver não meramente uma visão indireta de Deus – uma sarça ardente ou uma coluna de nuvem ou de fogo – veremos o seu Ser desvelado. Moisés teve um vislumbre da glória de Deus, mas não pôde ver a face de Deus (Êx 34.4-5). Uma olhada íntima e face a face com Deus é totalmente proibida a todo mortal neste mundo. Somos chamados a dedicar-nos a nós mesmos em santidade a um Deus que nunca vemos. Servimos a um Senhor que é invisível para nós. Mas ele promete que um dia nós o veremos. Nas bem-aventuranças, não é aos misericordiosos, nem aos pobres de espírito, nem aos pacificadores que é feita a promessa de ver a Deus. Em vez disso, Jesus afirmou: “Bem-aventurados os limpos de coração, porque verão a Deus” (Mt 5.8). A razão por que não podemos ver a Deus não está relacionada aos nossos olhos. Está relacionada ao nosso coração. Mas, quando entrarmos na glória e recebermos a plenitude de nossa santificação, o obstáculo para uma percepção direta e imediata de Deus será removido.Quando eu assisto a um jogo de basquete na televisão, estou assistindo realmente a um jogo de basquete? Não estou presente no evento; o jogo está acontecendo a muitos quilômetros de distância. Estou assistindo a uma transmissão eletrônica, uma reprodução. Há um meio entre o jogo e eu mesmo; assim, eu me torno ciente do jogo por intermédio do meio. Um meio é um intermediário; neste caso, ele transmite a imagem de algo de um lugar para outro. Quando eu assisto ao jogo na televisão, vejo apenas imagens do jogo. Se eu estivesse realmente no jogo, a luz do estádio transmitiria essas imagens aos meus olhos. Mesmo se eu tivesse visão perfeita, se fosse trancado num cômodo sem qualquer luz, não veria nada. Precisamos tanto de luz quanto das imagens para sermos capazes de ver.

Até a nossa visão presente é mediada. Jonathan Edwards disse que, na glória, nossa alma terá uma apreensão direta do Deus invisível. Não sabemos como isso acontecerá, mas sabemos realmente, por meio da Palavra de Deus, que o deleite de nossa alma, no céu, será ver a Deus como ele é.

A NATUREZA DO CÉU

No livro de Apocalipse, o apóstolo João registrou a visão que recebera na ilha de Patmos. Nessa visão, Cristo mostrou a João muitas coisas, incluindo o novo céu e a nova terra.

Vi novo céu e nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra passaram, e o mar já não existe. Vi também a cidade santa, a nova Jerusalém, que descia do céu, da parte de Deus, ataviada como noiva adornada para o seu esposo. Então, ouvi grande voz vinda do trono, dizendo: Eis o tabernáculo de Deus com os homens. Deus habitará com eles. Eles serão povos de Deus, e Deus mesmo estará com eles. E lhes enxugará dos olhos toda lágrima, e a morte já não existirá, já não haverá luto, nem pranto, nem dor, porque as primeiras coisas passaram (Ap 21.1-4).

Lemos que no céu não haverá nenhum mar, o que, se for entendido literalmente, pode desapontar os que amam praia. Entretanto, para os hebreus, o mar era um símbolo de violência. O litoral em Israel era rochoso e áspero. Além disso, era uma porta de entrada para investidas de saqueadores, e clima violento vinha do mar Mediterrâneo. Em toda a poesia hebraica, o mar é um símbolo negativo; o rio, a fonte e o poço servem como figuras positivas. Portanto, entendemos que a visão de João indica que não haverá mais catástrofes naturais violentas.

No céu também não haverá lágrimas. Associamos lágrimas com tristeza e pesar. Muitos de nós lembramos como, em nossa infância, nossa mãe nos consolava quando estávamos tristes, enxugando nossas lágrimas com o seu avental. Em geral, éramos levados às lágrimas de novo no dia seguinte, e precisávamos de consolo novamente. No entanto, quando Deus enxugar nossas lágrimas, elas nunca mais retornarão, porque as coisas que agora nos fazem chorar serão removidas. Não haverá mais morte, nem choro, nem dor. Estas coisas velhas terão desaparecido.

Quando João continua sua descrição, encontramos algumas dimensões surpreendentes de como será o céu e de como ele não será (vv. 18-21). O texto nos diz o que haverá no céu e o que não haverá. Achamos ruas de ouro tão excelente e puro que é translúcido. Fala das portas construídas de pérola magnificente e de um fundamento adornado de pedras preciosas. A literatura apocalíptica é imaginativa, por isso acredito que estas coisas são representações simbólicas do céu, mas eu não diria que é impossível Deus construir uma cidade como a que é descrita nesta passagem.

João nos diz mais: “Nela, não vi santuário, porque o seu santuário é o Senhor, o Deus Todo-Poderoso, e o Cordeiro. A cidade não precisa nem do sol, nem da lua, para lhe darem claridade, pois a glória de Deus a iluminou, e o Cordeiro é a sua lâmpada” (vv. 22-23). Não haverá nenhum templo, nem sol, nem lua. Nesta terra, um templo, ou igreja, é o símbolo visível da presença de Deus, mas no céu não haverá necessidade de qualquer templo, porque estaremos na presença real de Deus. Também não haverá necessidade de fonte de luz criadas – sol, luz, estrelas. O brilho da glória de Deus e do Cordeiro iluminará toda a cidade, e não haverá mais noite, porque a irradiante, reluzente e brilhante glória de Deus nunca cessa. O céu será iluminado com o puro e manifesto esplendor de Deus.

Para o que vivemos? Como forma de ilustração, Jonathan Edwards descreveu alguém que economiza dinheiro por vários anos a fim de sair em férias. Para chegar ao seu destino, ele precisa viajar, e, assim, a primeira noite ele passa numa hospedaria da estrada. Entretanto, no dia seguinte, em vez de continuar na viagem ao seu destino pretendido, ele resolve esquecer tudo e permanecer na hospedaria. Vivemos nossa vida desta maneira. Nós nos prendemos tenazmente à vida neste mundo, porque não estamos realmente convencidos da glória que o Pai estabeleceu no céu para seu povo. Toda esperança e todo gozo por que anelamos – e muito mais do que isso – abundarão neste lugar maravilhoso. Nosso maior momento será quando passarmos pela porta, deixarmos este mundo de lágrimas e tristeza, este vale de morte, e entrarmos na presença do Cordeiro.

R.C. Sproul. Somos todos Teologos: Uma introdução à Teologia Sistemática. pg: 257-260
Traduzido do original em inglês Everyone’s a Theologian: An Introduction to Systematic Theology
© Copyright 2014 por R.C. Sproul