A AÇÃO DA BESTA
Enquanto continuamos desenvolvendo a imagem de João acerca da besta, descobrimos evidências adicionais a respeito de Nero vindo ao foco. Lê-se em Apocalipse 13.5,7:
Foi-lhe dada uma boca que proferia arrogâncias e blasfêmias e autoridade para agir quarenta e dois meses. […] Foi-lhe dado, também, que pelejasse contra os santos e os vencesse. Deu-se-lhe ainda autoridade sobre cada tribo, povo, língua e nação.
Como ficamos sabendo pela leitura de Atos, o
cristianismo não foi molestado pelo Império
Romano durante seus primeiros anos. De fato, no
final de Atos, Paulo chega a apelar a César para se
proteger da perseguição judaica (At 25.11,12). Isso
aconteceu mesmo nos primeiros dias do reinado de
Nero. As coisas mudaram muito, no entanto,
quando Nero lançou ataques aos cristãos na tentativa
de desviar as suspeitas de ser ele o responsável pelo
incêndio destrutivo e mortal que destruiu grande
parte de Roma em 64 d.C.
O historiador romano Tácito (que nasceu no
reinado de Nero) registrou a horrível perseguição
que envolveu os cristãos em Roma:
Nero infligiu punições inauditas nos que, odiados por seus
crimes abomináveis, eram geralmente chamados de cristãos
(Ann. 15.44).
Ele até fala do “imenso número” de cristãos
assassinados por Nero. O cristão Clemente de
Roma, que viveu nesse tempo, menciona “uma vasta
multidão dos eleitos” que morreu sob Nero (1Clem
6). Sabemos que Pedro e Paulo foram executados
nesse período.
Logo, a perseguição de Nero contra os cristãos —
incluindo alguns dos maiores líderes — representou
a “peleja” travada pela besta contra os santos a fim
de vencê-los (Ap 13.7). Mas como deveríamos
entender o período de “quarenta e dois meses”
mencionados por João (Ap 13.5)?
Sabemos, pelos registros históricos, que o primeiro
ataque de Nero contra os cristãos em Roma ocorreu
em novembro de 64 d.C. Nero morreu no começo
de junho de 68. Johann Lorenz von Mosheim, o
grande historiador da igreja, resumiu esse período
com estas palavras:
Principalmente, na série daqueles imperadores, dos quais a
igreja se recorda com horror como seus perseguidores,
destaca-se Nero, um príncipe cuja conduta para com os
cristãos não admite atenuação, mas foi, até o último grau, desumana e caótica. A horrenda perseguição que se realizou
por ordem desse tirano começou em Roma perto em meados
de novembro do ano 64 de nosso Senhor… Essa horrenda
perseguição só cessou com a morte de Nero. O império,
como se sabe bem, não foi libertado da tirania desse monstro
até o ano 68, quando ele deu fim à própria vida.
Assim, temos o período em que a besta pelejou
contra os santos por quase 42 meses: de novembro
de 64 até junho de 68. O encaixe é relevante e
notável.
A RESSURREIÇÃO DA BESTA
Chego agora à parte da revelação que, muitos
acreditam, coloca um obstáculo insuperável à
interpretação de Nero/Roma como a besta do século
I. Ironicamente, no entanto, essa revelação confirma
a visão. A revelação que tenho em mente é a que
envolve a morte e a ressurreição da besta:
Então, vi
uma de suas cabeças como golpeada de morte, mas essa ferida
mortal foi curada; e toda a terra se maravilhou, seguindo a besta (Ap 13.3).
Como posso explicar esse conceito sem
declarar que Nero morreu e foi ressuscitado dos
mortos? É essa a objeção fatal da posição de
Nero/Roma?
Para interpretar com correção essa visão, devemos
começar recordando-nos da identidade dupla da
besta: ela pode transitar entre Roma (em sentido
corporativo) e o governante de Roma (em sentido
individual). Isto é, a besta representa os dois: o
Império Romano como uma entidade política e Nero
César como líder dessa entidade. Com isso em
mente, notemos que o significado transita na visão,
o que permite uma correspondência fascinante com
a história do século I.
Nero governou Roma de 54 d.C. até a sua morte em 9 de junho de 68 d.C. Nas últimas semanas de
vida, as destrutivas guerras civis romanas eclodiram.
Em desespero, Nero suicidou-se quando as forças
imperiais, sob a liderança do general Galba, estavam
prestes a capturá-lo. O império foi lançado em
convulsões devastadoras em sentido político e social.
O historiador romano Tácito lamentou esse período
negro na vida de Roma no século I:
A história em que
estou entrando é de um período sobejo em desastres, terrível em
batalhas, destroçado por conflitos civis, horrível mesmo na paz.
Quatro imperadores caíram sob a espada; houve três guerras civis,
mais guerras internacionais e, de modo geral, as duas coisas ao
mesmo tempo. Houve sucesso no leste e infortúnio no oeste. O
Ilírico foi transtornado, as províncias da Gália vacilaram, a
Bretanha se rendeu e desistiu de imediato. Os sármatas e os suevos
se levantaram contra nós; os dácios ganharam fama pelas derrotas
infligidas e sofridas; até os partos quase pegaram em armas pelo
charlatanismo de um pretenso Nero. Ademais, a Itália foi
perturbada por desastres nunca vistos ou que voltaram após o
lapso das eras. Cidades dos litorais férteis e ricos da Campânia
foram tragadas ou arrasadas; Roma foi devastada por
conflagrações, pelas quais os santuários mais antigos foram
consumidos e o próprio Capitólio incendiado pelas mãos dos
cidadãos. Sítios sagrados foram profanados; houve adultérios nos
lugares altos. O mar se encheu de exilados, seus penhascos se
contaminaram com os corpos dos mortos. Em Roma, houve mais
crueldade medonha (Hist. 1.2,3).
Com essa guerra civil caótica abalando os fundamentos do império, o mundo testemunha “os
senhores da terra habitável” (War 4.3.10) sediados
na “maior de todas as cidades” (War 4.11.5)
sucumbindo em horrendos espasmos mortais. Como
Tácito expressou:
Essa foi a condição do Estado romano
quando Sérvio Galba, eleito cônsul pela segunda vez, e seu colega
Tito Vínio iniciaram o ano que era para ser o último de Galba e,
para o Estado, quase o fim (Hist. 1.11; grifo adicionado).
De acordo com Josefo, a morte de Nero suspendeu
até a guerra judaica com Roma, quando o poderoso
general Vespasiano e seu filho Tito cessam as
hostilidades:
E agora, os dois estiveram em suspense sobre os
afazeres públicos, estando o Império Romano, então, em uma
condição instável; e não prosseguiram com a expedição contra os
judeus, mas consideraram agora inoportuno empreender qualquer
ataque contra estrangeiros, considerando o cuidado com o próprio
país (War 4.9.2).
Os relatórios que chegaram até o campo de batalha
em Israel são tão horríveis que lemos sobre
Vespasiano:
E seu pesar foi tão violento que ele não pôde
suportar os tormentos que havia sobre ele, nem a se dedicar mais
em outras guerras quando a sua terra natal estava desolada (War
4.10.2).
De fato,
“Roma estava próxima da ruína” (War
4.11.5), de modo que “o Estado romano estava tão
enfermo… [que] cada parte da terra habitável encontrava-se em uma condição indefinida e
instável” (War 7.4.2).
Assim, depois do suicídio de Nero com a própria
espada, parecia para o mundo que a poderosa Roma
estava morrendo. João descreveu esse fenômeno
como a besta recebendo uma ferida mortal em “uma
de suas cabeças” (Ap 13.3). Mas então, o que
acontece?
O famoso biógrafo romano Suetônio fala da
ressurreição de Roma do estado de morte:
O império
que por muito tempo esteve indefinido e, assim, arrastando-se ao
longo da usurpação e da morte violenta de três imperadores, foi
por fim colocado sob controle e recebeu estabilidade da família
Flaviana (Vesp. 1, grifo adicionado).
Josefo expressa a mesma surpresa com respeito à
resiliência de Roma:
Portanto, com a confirmação de todo o
governo de Vespasiano, agora estabelecido, e a libertação
inesperada dos deveres públicos romanos da ruína, Vespasiano
voltou o pensamento para os insubmissos na Judeia (War 4.11.5;
grifo adicionado).
Assim, depois de um período de penosas guerras
civis, o império reviveu, para a perplexidade do
mundo que agora retornava ao domínio de Roma.
Como João afirmou: “Então, vi uma de suas cabeças
como golpeada de morte, mas essa ferida mortal foi curada; e toda a terra se maravilhou, seguindo a
besta” (Ap 13.3), dizendo: “Quem é semelhante à
besta? Quem pode pelejar contra ela?” (Ap 13.4b).
Isso, sem dúvida e de modo notável
confirma o ponto de vista que aponta para
Nero/Roma.
CONCLUSÃO
Estou convencido: da mesma forma que “todos os
caminhos levam a Roma”
, também toda a evidência
da besta leva a ela. A evidência apresenta não só
uma adequação notável (mesmo onde não
esperaríamos), mas uma adequação relevante: Nero
vive em um período que se encaixa (Ap 1.1,3). Seu
império parece surgir do mar, da perspectiva de
Israel (13.1). O Império Romano possui incrível
autoridade política e poderio militar (13.2,4). Nero,
como a sexta cabeça de Roma, aparece em cena na
cronologia dos imperadores (17.10) e apresenta o
caráter de um homem bestial (13.5,6,8).
Até o nome de Nero se encaixa no misterioso
número da besta (Ap 13.18). Quando a besta “peleja
contra os santos”
, não ficamos surpresos ao saber
que Nero foi o primeiro perseguidor imperial da
igreja (13.7) — e pela exata duração indicada em
Apocalipse (13.5). Pode-se até aplicar o aspecto
mais improvável da profecia de João a Nero e ao
Império Romano: a morte e a ressurreição da besta
(13.3).
Kenneth L. Gentry Jr. Apocalipse para leigos — você pode entender a profecia bíblica —. pg: 103 - 111